Um estudo inédito conduzido por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com a Universidade de Bath, no Reino Unido, revelou uma conexão alarmante entre traumas vividos na infância e o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos na adolescência. Publicado na prestigiada revista The Lancet Global Health, o levantamento analisou dados de mais de 4 mil jovens brasileiros e identificou que 30,6% dos diagnósticos psiquiátricos aos 18 anos estão diretamente relacionados a experiências traumáticas precoces.
Os pesquisadores constataram que mais de 80% dos participantes relataram ter passado por pelo menos um evento traumático antes de atingir a maioridade. Dentre os fatores analisados, destacam-se acidentes graves, desastres naturais, violência doméstica, abuso físico e sexual, além da perda de um dos pais. O estudo demonstrou que quanto maior a exposição a esses eventos, maior o risco de desenvolver transtornos como ansiedade, depressão e transtornos de conduta.
Impacto da exposição à violência
A pesquisa teve como base a Coorte de Nascimentos de Pelotas de 2004, um estudo longitudinal que acompanha indivíduos desde o nascimento para avaliar os efeitos dos fatores de risco sobre a saúde. O levantamento contou com financiamento de instituições brasileiras e internacionais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a UK Research and Innovation (UKRI) e a Universidade de Bath.
A professora Alicia Matijasevich, do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP e coautora do artigo, destacou a relevância dos achados. “Os traumas na infância e adolescência têm um impacto significativo na saúde mental. Nossos resultados ressaltam a importância de estratégias de prevenção e intervenção precoce para mitigar os efeitos desses eventos ao longo da vida adulta”, afirmou.
A estudante de doutorado Megan Bailey, primeira autora do estudo, enfatizou a necessidade de investimentos em políticas públicas para proteger crianças e adolescentes. “A exposição à violência e outros eventos adversos é um fator de risco crucial para o desenvolvimento de transtornos mentais. Isso reforça a urgência de criar programas voltados à prevenção e ao apoio psicológico, especialmente para os mais vulneráveis”, ressaltou Bailey.
A carência de serviços de saúde mental
Um dos pontos centrais do estudo é a lacuna de evidências sobre o impacto dos traumas infantis em países de baixa e média renda. Segundo os pesquisadores, embora existam inúmeras pesquisas sobre o tema em países desenvolvidos, a realidade de nações com menos recursos é pouco explorada cientificamente. No Brasil, a prevalência de adversidades na infância é alta, e o acesso a serviços de saúde mental é frequentemente limitado.
Os especialistas defendem que é fundamental ampliar o suporte psicológico e psiquiátrico para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. A conscientização sobre os impactos dos traumas precoces também deve ser fortalecida, permitindo que professores, cuidadores e profissionais de saúde identifiquem sinais de alerta e encaminhem os jovens para o tratamento adequado.
O estudo reforça a importância de políticas públicas voltadas à prevenção de traumas na infância, como campanhas de combate à violência doméstica e abuso infantil, além da ampliação do acesso a serviços de saúde mental. “Proteger a infância significa garantir um futuro mais saudável e equilibrado para milhares de jovens”, conclui Alicia Matijasevich.